A Dinâmica dos Processos Inflamatórios
Nível – Básico
Diariamente, temos que lidar com diversas situações que nos são apresentadas em forma de problemas, os quais necessitam ser solucionados. Em cada uma delas há uma consequência que foi provocada devido a alguma circunstância ou fator ocorrido. Em Odontologia, isto não é diferente. Variados problemas, como cáries, doença periodontal, traumas, disfunções mastigatórias ou comportamentais, patologias, etc., podem surgir e trazer ao paciente sinais e sintomas como escurecimento dental, problemas estéticos ou funcionais, inflamações, fístulas, dores provocadas ou espontâneas, e abscessos. Estas consequências, podem ser tratadas para minimizar os seus danos, mas em geral não resolvem o problema em si permitindo uma recidiva a curto ou médio prazo, já que os sintomas podem retornar e causar novamente um grande incômodo ao paciente. Isto se não considerarmos o agravamento do quadro ao longo do tempo, o que pode piorar, e em certo ponto, até impedir a sua resolução definitiva.
Assim, é extremamente importante que qualquer cirurgião-dentista tenha no mínimo um conhecimento básico de diagnóstico, que o permita detectar, identificar e tratar o problema em questão ou, se for o caso, indicá-lo a outro profissional com conhecimentos adequados na área, para fazê-lo.
Não é incomum os cirurgiões-dentistas se enganarem em diagnósticos simples, já que, não possuindo um protocolo passo-a-passo para acompanhar, se veem no meio de muitas dúvidas que impedem a inspeção, seguida da indicação, aplicação e interpretação adequadas dos diversos testes auxiliares, vitais nessa fase crucial do atendimento clínico.
Por que os dentes que apresentam dor são logo indicados para o tratamento Endodôntico sem qualquer exame comprobatório da sua real necessidade? Se pararmos para pensar que um dente despolpado nunca mais irá doer por motivo de cárie, por exemplo, isto nos leva a crer que na sua presença, futuramente, o paciente não terá qualquer aviso antes, de talvez, perder grande parte da sua estrutura dental, podendo impedir a manutenção do elemento na cavidade oral. Isto significa a relevância de se ter certeza sobre a indicação de qualquer tratamento, tanto pelo tempo e gasto desnecessários por parte do paciente e do dentista, como também pela irreversibilidade de alguns procedimentos.
Existem vários motivos que levam um paciente a sentir dor, e isto, deve ser investigado até a sua causa, para que um tratamento adequado possa surtir efeito e definitivamente, resolver o problema. Diversas patologias podem provocar sintomatologia dolorosa em um paciente. Dentre elas, podemos destacar: pulpites, pericementites, gengivites, trauma oclusal, abscessos, pericoronarites e outras lesões diversas. Para que possamos identificá-las, é necessário seguir um protocolo de exames clínicos e radiográficos na tentativa de isolar o fator causador do problema apresentado, esteja ele se manifestando como dor ou não. Várias são as situações, sem sintomatologia dolorosa, onde o tratamento endodôntico será inevitável, como, por exemplo, a necrose pulpar. Isto às vezes é difícil até de se explicar ao paciente, mas devemos fazê-lo, destacando os seus reais motivos.
A seguir, serão descritos os protocolos em detalhes, com a intenção de ao final deste artigo, estabelecermos todos os procedimentos a serem aplicados nas situações onde um diagnóstico diferencial precisará ser alcançado. Vale ressaltar que cada caso deve ser individualmente estudado, podendo diferir pontualmente das informações a serem aqui apresentadas. Sabemos que em biologia não existem as palavras “sempre e nunca”, a não ser quando precedidas da palavra “quase”.
Neste momento será necessário que esclareçamos alguns fatores importantes antes de prosseguirmos.
a-) As dores de origem pulpar, como as pulpites, por exemplo, são apenas provocadas ou exacerbadas por mudanças de temperatura. O ar em contato com o elemento dental também pode fazê-lo, mas provavelmente, apenas se existir dentina exposta, na coroa ou em retrações gengivais, por exemplo. Obviamente, elas podem estar presentes de forma espontânea também.
b-) As dores de origem periodontal, como pericementites, causadas por trauma, infecção ou ambos, são provocadas ou exacerbadas apenas por movimentação dental, como mastigação ou percussão no elemento examinado, seja ela oclusal ou lateral.
c-) As dores que acometem o fundo de sulco vestibular, lingual ou o palato, podem indicar abscessos, mesmo que não apresentem grandes aumentos de volume na região. Tais edemas, principalmente os indolores, podem ter outros motivos como cistos ou tumores.
d-) Exames radiográficos são apenas auxiliares, e devem ser interpretados cuidadosamente em conjunto com os outros exames que apresentaremos a seguir. Não podemos esquecer que as radiografias apresentam apenas duas dimensões, onde não estarão contidos os sinais e sintomas relatados pelo paciente e/ou identificados pelo dentista. Comumente, lesão pequenas não são visíveis em radiografias.
Obs.: inflamações severas de origem, tanto pulpar como periapical ou periodontal, podem sensibilizar a região, provocando dor de intensidade leve a moderada em estruturas não relacionadas diretamente ao problema.
Todo elemento dental percorre uma linha de acontecimentos que se inicia com a normalidade (Fig. a). Ou seja, um dente com polpa, periápice e todas as estruturas periodontais saudáveis. Ao sinal de qualquer alteração deste equilíbrio, como trauma, fratura, cárie, infiltração ou perda da restauração, que exponha a dentina à cavidade oral, teremos início a uma corrente de eventos, que, se não interrompida, poderá culminar com a destruição de muitas estruturas importantes da região. Havendo exposição dentinária, mesmo que em pequenas proporções, algumas alterações na cavidade pulpar começam ser percebidas. Com os túbulos dentinários expostos, os prolongamentos odontoblásticos provenientes das células odontoblásticas presentes na polpa são capazes de detectar a movimentação de fluídos no interior desses túbulos. Algumas dessas células pulpares são sugadas para o interior dos túbulos, e outras não resistem à agressão e sucumbem. A partir daí, dá-se um processo inflamatório que visa a reposição destas células perdidas, na intenção de que as mesmas produzam dentina terciária para vedar e isolar essa exposição. Esse processo provoca vasodilatação, aumento da permeabilidade vascular e saída de plasma dos vasos, esta última levando consigo as células de defesa, que irão reorganizar o tecido danificado, bem como os fibroblastos, que irão se diferenciar em odontoblastos, para repor aqueles que foram perdidos. A saída de plasma dos vasos provoca um aumento de pressão no tecido, sensibilizando as terminações nervosas e podendo provocar sensibilidade no dente afetado. Em fases iniciais, este processo apresenta-se como dor provocada, de leve a moderada, que cessa após alguns segundos com a remoção do estímulo. É o que chamamos de Pulpite Reversível (Fig. b). Essa inflamação leve acomete apenas uma pequena parte da câmara pulpar e pode ser totalmente revertida à condição de normalidade, na grande maioria dos casos, apenas com a remoção da causa. Comumente, o tratamento restaurador resolve o problema e a sensibilidade. Chamamos atenção para o fato de que o tratamento da dentina exposta tem que ser feito com todo o critério recomendado para se evitar a sensibilidade prolongada.
Se não houver interferência no processo inflamatório pela remoção da causa, ele pode piorar e envolver outras regiões da câmara pulpar, juntamente com o aumento da exposição dentinária, pelo crescimento da lesão cariosa, por exemplo. Quando a maior parte da polpa coronária está comprometida pelo processo inflamatório, a dor pode se tornar, aos poucos, mais intensa à provocação e posteriormente espontânea intermitente, seguida de espontânea contínua. A esta fase chamamos de Pulpite Irreversível (Fig. c). Aqui temos uma inflamação severa da polpa coronária, onde parte das células, já necrosadas, não podem mais ser repostas pelos fibroblastos. Podem também, existirem microabscessos pulpares, o que intensifica a dor espontânea. Essa dor pode ser explicada pelo grande aumento da pressão intrapulpar, proveniente da saída de plasma dos vasos, pois como a cavidade pulpar não é expansível, e não permite o aumento de volume, isso resulta em elevação da pressão na região.
O processo continua evoluindo até que as células pulpares alcancem um alto percentual de necrose, fase em que a pressão intrapulpar reduz, terminando a fase dolorosa. Essa necrose vai progredindo em camadas, aprofundando-se mais no interior dos condutos e da dentina, à medida que a infecção bacteriana contamina tais camadas. Esse processo pode demorar semanas ou meses e geralmente é indolor ou de baixa sensibilidade. A essa fase denominamos Necrose Pulpar (Fig. d). Alguns casos de polpas necrosadas ainda apresentam terminações nervosas viáveis, já que estas, tendem a necrosar mais lentamente que o tecido conjuntivo. Quando o processo inflamatório que precede a necrose apresenta-se de baixa intensidade e longa duração, a polpa com inflamação leve pode evoluir para a necrose de médio a longo prazo sem causar dor. Isto é possível quando a inflamação crônica de longo prazo esgota as células fibroblásticas da polpa, com estímulos leves, subclínicos, porém fatais para as mesmas. Em algum momento deste processo, a polpa cessa a resposta aos estímulos térmicos.
Quando o processo de necrose alcança a região periapical, ele pode induzir a uma inflamação periodontal apical ou uma Pericementite (Fig. e), dependendo da agressividade das espécies bacterianas envolvidas. Neste ponto, duas possibilidades são passíveis de ocorrer.
1-) Um processo lento, crônico e de baixa agressividade pode provocar uma inflamação subclínica de defesa do organismo, para combater a infecção, que agora extravasa bactérias com seus subprodutos e toxinas na região do ligamento periodontal. Em resposta, são enviadas células de defesa, que fagocitam esses antígenos, bem como enzimas lisossômicas digestivas que destroem todas as estruturas regionais, como o ligamento periodontal, o osso, o cemento e até mesmo a dentina. Então um tecido conjuntivo frouxo especializado em defesa se forma no lugar das estruturas destruídas, formando uma Lesão Granulomatosa Periapical (Fig. f). Ela se apresenta como uma imagem radiolúcida e, por ser assintomática, pode existir por meses ou anos antes de ser descoberta por uma radiografia de rotina. Obviamente esse processo pode evoluir em tamanho ao longo dos anos, ou até mesmo, devido a um equilíbrio agressor-hospedeiro, agudizar (ou agudecer), causando dor, ou nos piores casos, um abscesso.
2-) Um processo agudo de rápida evolução provavelmente acarretará em uma Pericementite Bacteriana Aguda (Fig. g), uma inflamação severa na região periodontal apical, provocando dor aguda à percussão de intensidade variável. Se a infecção não for reduzida via conduto, ela pode iniciar um microabscesso (o que torna a dor à percussão insuportável), seguido de um abscesso. Por não ter onde se acumular, devido à integridade das estruturas apicais até então, a coleção purulenta possivelmente irá drenar fisiologicamente, em meio ao trabeculado ósseo, destruído intencionalmente pelos osteoclastos (Fig. h) até a cortical óssea, finalmente chegando ao tecido conjuntivo, logo abaixo da lâmina do periósteo (Fig. i). Nesta fase de drenagem fisiológica intra-óssea, em geral, não há acúmulo de líquido purulento, assim, dificilmente poderíamos diagnosticar como abscesso, já que possui apenas as características de pericementite aguda. Exceção seria nos casos de lesões periapicais previamente existentes, permitindo um acúmulo de pús e caracterizando um Abscesso Intra-ósseo.
Quando o pús se acumula no interior do periósteo, a pressão do descolamento do mesmo, aliada as reações químicas das toxinas, pode provocar dor aguda espontânea ou dor de moderada a severa à palpação. Devido as inserções musculares, dependendo da região onde o periósteo for rompido, a coleção purulenta pode drenar para o plano intra ou extra-oral. Como é uma possibilidade dependente da anatomia da região, em qualquer das duas hipóteses, provavelmente não há como interferir ou modificar o ponto de drenagem. Em caso de acúmulo intra-oral, o aumento de volume no fundo de sulco normalmente é discreto e consistente, sem flutuação, podendo haver fases discrepantes. A esta fase podemos chamar de Abscesso Subperiósteo (intra-oral) (Fig. j). Rompida a lâmina do periósteo pela pressão, por exemplo, o paciente sentirá um grande alívio da dor, à medida que o pus se espalha pelo tecido conjuntivo adjacente, assumindo características de maior aumento de volume no fundo de sulco, agora, com flutuação e baixa intensidade dolorosa, mesmo à palpação. É claro que novamente podem haver casos com algumas discrepâncias. Essa evolução pode ser chamada de Abscesso Submucoso (intra-oral) (Fig. k). Os abscessos submucosos, por acumularem-se no tecido conjuntivo gengival, podem provocar processos inflamatórios nas áreas adjacentes, como bochechas, regiões infra-orbitária, sublingual e submandibular. Essa celulite facial extra-oral, caracteriza essa disseminação, como Abscesso Submucoso Difuso (intra-oral) (Fig. k), e pode vir acompanhada de sintomas sistêmicos, como febre, trismo, prostração, falta de apetite, aumento de pressão arterial, da frequência cardíaca e respiratória, dor de cabeça, náuseas, etc., indicando a necessidade de antibioticoterapia. Caso não haja envolvimento dos tecidos vizinhos, mas sim, apenas um processo local e controlado, podemos nomeá-lo de Abscesso Submucoso Localizado (intra-oral) (Fig. k), o qual apresenta um discreto aumento de volume com flutuação, delimitado a uma pequena região, praticamente sem dor, mesmo à palpação. Este último geralmente provém de processos crônicos e tem grandes probabilidades de formação das fístulas, que são apenas drenagens fisiológicas feitas pelo organismo para evitar o acúmulo de pús no interior dos tecidos. As fístulas tendem a desaparecer por si só com a remoção da causa.
Em caso de acúmulo de pús nos planos musculares externos, o abscesso será Extra-oral, e pode ser Localizado, se for delimitado e com pequeno aumento de volume, ou Difuso, se apresentar grande edema facial, sendo, neste caso, de grande importância emergencial (tratamento hospitalar imediato). A diferença entre o abscesso intra-oral submucoso difuso (com envolvimento extra-oral) e o abscesso extra-oral difuso, é que o intra-oral possui aumento de volume no fundo de sulco e por ele deve ser drenado, pois se apresenta concentrado nessa região, delimitada pela cortical óssea, sendo, por isso, extremamente superficial. Quanto ao extra-oral, não há aumento de volume intra-oral e a coleção purulenta se apresenta espalhada por entre os tecidos e músculos faciais, necessitando de vigorosa drenagem regional com antibioticoterapia. Para outros detalhes sobre diagnóstico e tratamento de Abscessos, leiam o artigo Abscessos Dento Alveolares, recentemente atualizado.
Este foi um “pequeno” resumo da dinâmica do processo inflamatório das estruturas dentais e adjacências. Devemos lembrar que as fases, apesar de serem nomeadas, estão intimamente ligadas umas as outras, podendo apresentar, em alguns pontos transitórios, características comuns as duas fases, imediatamente consecutivas. Não seria ótimo se soubéssemos em que fase, das descritas anteriormente, o paciente se encontra? Sabermos qual a real causa da dor ou dos demais sintomas apresentados? Mas como podemos fazê-lo? Esse é o objetivo primordial pelo qual vos escrevo neste momento. Tentar explicar que a maioria dos diagnósticos podem ser simplesmente resolvidos, assim como, qualquer dúvida que nos é apresentada na vida, investigando! Só o que precisamos saber é onde investigar e como investigar. E isto será abordado na segunda parte deste artigo: Caminhos para o Diagnóstico e Interpretação dos Testes.
Referências:
Diagnostic and Clinical Factors Associated with Pulpal and Periapical Pain Carlos Estrela, Orlando Aguirre Guedes, Júlio Almeida Silva, Cláudio Rodrigues Leles, Cyntia Rodrigues de Araújo Estrela, Jesus Djalma Pécora. Braz Dent J (2011) 22(4): 306-311.
Microflora of root filled teeth with apical periodontitis in Latvian patients. Mindere A, Kundzina R, Nikolajeva V, Eze D, Petrina Z. Stomatologija. 2010;12(4):116-21.
Dental caries and pulpal disease. Zero DT, Zandona AF, Vail MM, Spolnik KJ. Dent Clin North Am. 2011 Jan;55(1):29-46.
Apical root canal microbiota as determined by reverse-capture checkerboard analysis of cryogenically ground root samples from teeth with apical periodontitis. Rôças IN, Alves FR, Santos AL, Rosado AS, Siqueira JF Jr. J Endod. 2010 Oct;36(10):1617-21. Epub 2010 Aug 24.
Polpa Dentária de Seltzer e Bender. Kenneth M. Hargreaves, Harold E. Goodis. Quintessence Editora. 2009.
A clinical classification of the status of the pulp and the root canal system. Abbott PV, Yu C. Aust Dent J. 2007 Mar;52(1 Suppl):S17-31.
An overview of the dental pulp: its functions and responses to injury. Yu C, Abbott PV. Aust Dent J. 2007 Mar;52(1 Suppl):S4-16.
Nonendodontic periapical lesions: a retrospective study in Chile. Ortega A, Fariña V, Gallardo A, Espinoza I, Acosta S. Int Endod J. 2007 May;40(5):386-90. Epub 2007 Mar 21.
Role of occlusion in endodontic management: report of two cases. Yu CY. Aust Endod J. 2004 Dec;30(3):110-5.
Bacterial infections of pulp and periodontal origin. González-Moles MA, González NM. Med Oral Patol Oral Cir Bucal. 2004;9 Suppl:34-6; 32-4.
Carious pulpitis: microbiological and histopathological considerations. Martin FE. Aust Endod J. 2003 Dec;29(3):134-7.
Endodontic infection: some biologic and treatment factors associated with outcome. Chugal NM, Clive JM, Spångberg LS. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod. 2003 Jul; 96(1): 81-90.
Texto Atlas Colorido de Trauma Dental. Andreasen JO, Andreasen FM. Ed. Artmed 3a. Edição, 2001.